Toca-me | Conto Erótico
A vida dele era música. A sua paixão, o piano. A sua musa, a lua. Depois das inúmeras noites em claro que provocou aos seus pais desde criança, poucas tinham sido as manhãs em que tinha estado desperto. Só depois de passado, pelo menos, meio dia é que se sentia realmente vivo no mundo. E, à noite, ele não era do mundo, era de todo o universo. Os sons e os ritmos que provinham do quotidiano da cidade, da azáfama do dia a dia, das rotinas que se constroem em busca de algo que nunca ninguém sabe se irá alcançar, pouco lhe interessavam. Era no silêncio da noite que existia a verdadeira música e, tal como as marés, era na presença da lua que balançava o seu ritmo, a sua frequência e o comprimento das suas ondas. A música do universo não se ouve, sente-se. Tal como não se ouve o oceano quando cobrimos as orelhas com uma concha, mas sentimo-lo como se o oceano estivesse dentro de nós. Apaixonou-se pelo som do piano por causa da chuva. Daquela que se infiltrava no teto da casa da sua avó materna e pingava sobre as louças e os cristais. Nas férias em que viajava para o norte e dormia nessa antiga casa de campo, em noites de tempestade, passava as noites acordado só a ouvir o cair das gotas por toda a casa. Na louça, nos baldes, nas máquinas. Plim, plum, plam. Uma sinfonia a conta gotas. Quem o via a tocar piano fazia, recorrentemente, a analogia dos seus dedos parecerem gotas a cair sobre as teclas. Ele sorria sempre que alguém lhe dizia isso. Também o sentia. Ao início achava que esse jeito particular se devia ao cansaço de passar muitas noites seguidas a tocar sem dormir.
Mas rapidamente percebeu que era o seu próprio corpo que sentia prazer ao deixar-se cair sobre os travessões de marfim, como gotas de chuva sobre copos de cristal. Essa particularidade, aliás, era um dos seus principais atrativos. Quase sempre que atuava em público, os seus dedos e a forma como os usava eram tema de conversas mais ou menos insinuantes, e já muitas vezes tinha sido desafiado a mostrar o que aqueles dedos eram capazes de fazer para além de tocar piano, algo que ele se recusara sempre. De todas as experiências sexuais que tinha tido, nenhuma delas tinha incluído usar os dedos ou as mãos. Recusava-se a correr esse risco. Em todas as ocasiões de intimidade, a sua postura era manter-se passivamente à mercê de quem quisesse desfrutar dele. Nunca tinha, literalmente, mexido um dedo durante o ato sexual. Já lhe tinham feito de tudo, mas os seus dedos apenas tinham feito uma coisa: agarrar um charuto e um copo de whisky antes, durante e depois. A sua satisfação estava na música, não no sexo. O prazer estava no éter, não no corpo. O orgasmo estava na alma, não na ejaculação. E nem homens nem mulheres o tinham feito trocar as teclas por ponto erógenos ou enfiar dedos onde quer que fosse. No ato sexual, o seu corpo era o instrumento para os outros tocarem à vontade. E ele gostava de ser tocado, tal como um piano gosta de fazer todo um concerto apenas com o toque do pianista.
Quando, tantas vezes, passava a noite na sua varanda a observar as estrelas e a lua, tentando expandir a sua consciência para sentir a imensidão do cosmos e os mais ínfimos sons da natureza, sentia que aquele, sim, era um momento de êxtase transcendente. Numa dessas noites, com a brisa quente de verão e a segunda garrafa de vinho vazia, adormeceu deitado na confortável poltrona que arrastava todos os dias para a sua varanda. O copo de vinho, de cristal, que pendia da sua mão, caiu e partiu-se, sobressaltando-o, no exato momento em que, no seu sonho, um piano caía sobre si. Assustado com a iminente morte por piano, que se tinha tornado real com o som de um copo de cristal a partir-se junto a si, pôs as mãos no peito para acalmar o coração e suspirou. Entrelaçou os dedos e sentiu o seu peito a bater a um ritmo que nunca tinha sentido antes. Voltou a fechar os olhos para respirar fundo e, quando os abriu, olhou novamente o céu noturno à procura de serenidade. “Shiuuu…,” ouviu ele, como se fosse uma rajada de vento mais forte mas, ao mesmo tempo, o som que se faz quando se pede silêncio antes de começar um concerto. “Está tudo bem….”, ouviu ele, agora com mais certeza que era uma voz e não o vento. Olhou em volta para tentar perceber de onde vinha aquela voz e não viu ninguém. Da varanda, que pendia sobre uma pequena estrada que saía da sua casa para o meio de uma zona de um mato cerrado, também não se via viva alma. Estranhou. “Toca-me…” ouviu, agora com a certeza absoluta que a voz, muito provavelmente feminina, vinha de dentro da sua casa. “Quem está aí?”, gritou. Nenhum som. Nem os grilos nem as cigarras, nem os pássaros nem as árvores, nem o vento nem o eco da sua própria voz. O mundo parecia mudo. “Toca-me…” ouviu de novo, seguido da nota Si tocada em piano. Olhou para dentro de casa e viu alguém sentado em frente ao seu piano. Uma figura vestida de branco, curvada sobre as teclas mas completamente imóvel. Ele caminhou devagar e circundou a enorme cauda do piano.
Era uma jovem mulher que estava sentada no seu banco. Ela olhava para as teclas do piano com as mãos pousadas sobre elas mas sem se mexer. Os olhos dele abriram-se ao mesmo tempo que a sua boca. Que visão era aquela? “Queres tocar-me?…” perguntou a figura sem se mexer. “Quem és tu?…” perguntou ele quase sem mexer os lábios. A mulher levantou-se e olhou para ele. Curvada parecia pequena mas agora de pé era mais alta que ele. Vestia apenas uma túnica branca que pendia sobre os seus ombros e os seus seios volumosos. A sua pele pálida quase não permitia perceber as suas formas nem feições. O olhar era meigo e notava-se que sorria ligeiramente. O cabelo liso e louro escorria até meio das costas e não se movia apesar da janela aberta e da brisa de verão ter voltado a soprar. “Queres tocar-me?…” voltou a perguntar ela, desta vez com uma voz que saía nitidamente da sua boca. E com um gesto delicado, passou os dedos por entre as alças da túnica, deixando–a deslizar pelo corpo abaixo. “Toca-me…”, repetiu ela. “Como?”, respondeu ele num impulso incrédulo, sem sequer pensar. “Como quiseres…” disse a mulher nua. “Só sei tocar piano…” disse ele ainda com as mãos sobre o coração, que agora parecia não bater. “O que é um piano?…” perguntou ela. “É um instrumento…” respondeu ele automaticamente. “E o que faz esse instrumento?…” insistiu ela. “Música…” retorquiu ele. “E o piano é o único instrumento que faz música?…” continuou ela. “Não…”, assumiu ele. “Então por que só tocas nesse instrumento?…” questionou ela. Ele piscou os olhos sem saber o que responder. “Queres ouvir a minha música?…” voltou a perguntar ela. “Sim… quero…” balbuciou ele. “Então vem, toca-me…” disse ela esticando-lhe a mão em forma de convite.
Ele avançou com passos curtos, ainda incrédulo com aquela aparição e, à medida que se aproximava, sentia os seus ouvidos a estalar, como quando se sobe ou se desce de uma grande altitude repentinamente. Então, mal tocou na mão estendida da mulher, sentiu uma clareza tal nos seus canais auditivos que parecia conseguir ouvir todos os sons do universo. A madeira a ceder sob os seus pés, a tensão da borracha dos seus sapatos, o esforço dos seus atacadores, o bater das asas da traça à volta da luz do único candeeiro da sala, a corrente elétrica da lâmpada, o passos de um aranhiço numa teia atrás da cómoda, o brotar da terra de uma planta acabada de plantar no vaso junto à janela e todas as outras ínfimas existências à sua volta. A sua cabeça estava prestes a explodir de tantos sons quando, subitamente, tudo ficou silencioso de novo e o impacto foi ainda maior. Sentiu o vazio como se estivesse no fundo do oceano. Até que, no meio do silêncio, ele ouviu um suspiro. Olhou em frente e viu que as suas mãos estavam agora dentro do corpo da mulher, trespassando-a como um fantasma. “Estás a tocar-me… cá dentro… notas?”, perguntou ela. Ele afirmou com a cabeça. “Não acordes…” continuou ela. Os seus olhos iluminaram-se como dois sóis e os seus gemidos tornaram-se cada vez mais sonoros e intensos. “Sinto o sol a nascer em mi…”, gritou ela, “si, quero… sem dó… nem ré… dá-me, dá-me lá… fá, faz-me… fá…” e, como uma soprano em plena ária, projetou um grito orgásmico tão potente que estilhaçou o corpo dele em mil pedaços… no exato momento em que ele caiu em cima das teclas do seu piano e o barulho estrondoso o fez acordar. Sobressaltado, olhou em volta e viu que estava novamente sozinho. Olhou para as suas mãos e viu que estavam molhadas. Cheirou-as e cheiravam a flores. Estava em casa e acordado mas, pela primeira vez em alguns anos, em vez da lua, o sol espreitava pelas frestas da janela numa luminosa manhã de verão.